quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O registro no ensino da arte


O registro no ensino da arte
Juliana Carnascialli


É através da linguagem que o homem resgata o mundo externo no seu universo interno. A ação de registrar tem por objetivo exercitar diferentes possibilidades de marcar a aprendizagem a partir da criação, ato revelador



A partir de cursos realizados em 2003 no Espaço Pedagógico, fundado por Madalena Freire, muitos mergulhos em encontros sobre arte-educação, sobre ser um professor pesquisador, mediados por Gisa Picosque, educadora, assessora e curadora de arte, despertaram meu apaixonado olhar pedagógico. Fizeram com que eu ampliasse o trabalho de registro, que já era prática em sala de aula, de modo que se tornasse mais significativo para os alunos como uma prática e um momento de avaliar, um desvelar para revelar processos deixando marcas. Algo sem o que, depois de um tempo, muitos alunos não conseguiriam viver sem, já que deixar marca é identificar, é fazer parte.

Meu objetivo foi fazer com que o registro ficasse inerente à criança e sua construção de conhecimento de forma criativa e prazerosa, colaborando com a possibilidade de desenvolvimento de capacidades perceptivas e cognitivas, com a leitura de mundo a partir da leitura de ações presentes e com a expansão da capacidade criativa de cada um. O ligar, relacionar, sugerir, modificar, inferir.

Desta forma, "seduzi" aos poucos as crianças com o universo do "deixar marcas". Quando menos percebi, estava sendo cobrada: "Professora, hoje não tem registro? Fiz meu registro, você pode ver? Posso mostrar meu registro para a classe? Não consegui fazer o que foi sugerido, mas escrevi, quer ver?", e assim por diante. Muitas vezes, uma aula programada transformou-se, de modo positivo, em aula de registro, um meio construtivo de ensinar-aprender, um modo de rever conhecimentos construídos, podendo construir conhecimentos novos, quando os grupos de alunos apresentavam sua forma de olhar sobre acontecimentos das aulas e atividades.

Este especial trabalho com a ação de registrar tem por objetivo exercitar diferentes possibilidades de marcar a aprendizagem a partir da criação, ato revelador. Para que sejam percebidas as suas possibilidades, caminhei através dos tempos, pela citação sugestiva de um exemplo prático, fruto de linguagem que constituiu e constitui cultura, e que foi trabalhado no ano de 2004 com alunos de 4a série do ensino fundamental. O exemplo prático: Pablo Picasso, artista espanhol considerado um dos mais importantes do século XX por sua capacidade inventiva e expansiva de registro dentro e fora, para si e para o mundo, em especial, por sua capacidade de olhar, um mover-mutar o olhar.

Com as crianças, mover-mutar o olhar foi deslocar a pessoa aluno no tempo-espaço, linkando o ontem ao hoje, e provocá-las a olhar-pensar, a descobrir Picasso e o porquê da importância de sua trajetória a partir da ação. De que forma? Utilizando a ferramenta-coração deste texto: o registro expandido.

Tudo isso porque é através da linguagem que o homem resgata o mundo externo no seu universo interno. E apresentar estas possibilidades de registro aos leitores é oferecer a seus olhos diversidade, caminhos de reflexão, é exaltar a importância da linguagem artística, que se utiliza dos símbolos, para a construção de uma cultura que pode ser memória de mundo. Buscar caminhos criativos para registrar pode ampliar horizontes, teias de informação. Para isso, os passos são: olhar, sentir, refletir, registrar, chegar mais perto, deixar um rastro, fazer uma história, acontecer, tecer... Sempre por diferentes olhares.

Para exercitar este caminho sugerido, estimulei os alunos a olhar de modos diferentes o universo de Picasso. Proporcionei a eles uma imersão em imagens e histórias, capturadas por eles mesmos sobre a vida e obra do artista, com o intuíto de mapeá-lo. Ou seja, realizar um mapa de percurso que imprimisse sentido à condição de artista provocador, bem como mostrar sua importância no contexto do mundo no século XX e depois.

Em grupos, os alunos puderam coletar tudo o que consideravam essencial existir de modo prático para o mapeamento do artista. Talvez você esteja pensando: "Mas como ela fez isso com alunos de 10 anos? Como eles compreenderam que um mapa poderia ser uma forma de registrar, de dar sentido? Como ela os provocou?

Parece difícil! E pode ser. Mas não é quando temos clareza do que queremos apontar. Logo, esclareço. Antes da montagem do mapa, foram realizadas atividades de nutrição estética - leitura de imagens - , discussões sobre o assunto, indagações sobre para que pode servir um mapa. Desta maneira, quando desafiei o grupo a usar as experiências vividas e as descobertas realizadas até o momento para descobrir mais e representá-las em forma de imagem de modo organizado, tive uma surpresa feliz com o que haviam selecionado de mais importante para caracterizar o artista estudado. Havia envolvimento e desejo de fazer-aprender, a busca da essência do artista para o registro. Com este processo deu-se a consciência, da matéria à idéia.

É interessante que no início do ano os alunos sejam convidados a deixar rastros, a ver de modos diferentes. E para fazer isso acontecer é necessário provocar. Uma sugestão de provocação pode ser a resignificação de objetos do cotidiano, por um mediador, no caso o professor. Estes itens terão o objetivo de entrar no universo da sala de aula de forma a virar objeto de desejo e curiosidade nos processos de aprendizagem. O desejo move. Já dizia Félix Guattari : "O desejo passa por cima e por baixo de todas as barreiras". O desejo tem a capacidade de fazer o indivíduo gerar deslocamentos, e estes proporcionam revelações.

No ano de 2005, como objeto de desejo em uma escola de Osasco (SP), foi inventado o Momento Óculos. Foi dito à classe que no final da aula eles receberiam um presente para o coletivo. Portanto, precisaria de cuidados especiais, todos poderiam levar para casa e utilizar, experimentar. Ao final da aula foi dado o presente: óculos de plástico com olhos impressos. Além de instigantes, curiosos e divertidos, eles transformam o indivíduo, que, quando os coloca no rosto, parece um outro alguém, com um diferente objetivo, um novo olhar. A missão para o aluno sorteado a passar uma semana experimentando os óculos era simples: ver coisas que nunca viu, ou ainda, olhar algo que sempre vê para descobrir detalhes nunca antes percebidos. Todos queriam levar os óculos e experimentar.

No retorno, o aluno experimentador expressa suas descobertas para a classe do modo que considerar mais coerente. Aqui temos o ritual da transposição, a representação, o colocar para fora o reflexo do que se percebeu nos espaços percorridos.

Para isso, exercícios de registro. A princípio, registro escrito, este que colabora no desenvolvimento de capacidades descritivas, críticas, criativas, organizacionais e expositivas, sugerindo percursos de auto-estima, desenvoltura, comunicação e identificação. Criação de histórias que imprimem qualidade à construção do conhecimento, a oportunidade do aluno se expressar e descobrir sentido na expressão, fato que modifica os processos de construção de conhecimento do indivíduo fazendo com que ele se dê oportunidades de aprender e inventar. Estabelecido este caminho, o educador pode inventar ainda mais, desafiar, propor registros múltiplos, como registro-desenho, registro-poesia, registro-receita, registro-mapa, registro-fragmento, registro-música, registro, registro, registro... Quanto mais criativos forem os desafios, maior é o desejo do aluno de fazer e trocar sua experiência.

Desta forma, professores de todas as áreas, a chave é instigar, seduzir, criar portas. Como diria Calos Drummond de Andrade: "Trouxeste chave?". Agora é com você, professor. Experimente!

Juliana Carnascialli é arte educadora, professora da Fundação Bradesco e assessora de práticas de ensino da Arte.
E-mail: j.carnasciali@ig.com.br


REFERÊNCIAS
GUATTARI, Félix - Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia - volume 1 . coleção Trans - editora 34 - SP p 1995
ANDRADE, Carlos Drumond de - www.opoema.libnet.com.br/carlosdrummond/carlosdrummond.htm

Fonte: Artigo originalmente publicado pela Revista Pátio Ano IX - Nº 34 - Avaliação Novos Desafios - Maio à Julho de 2005

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